O SILÊNCIO DOS JUSTOS
Em plena ditadura (1964-1985) erigiu-se no Brasil a
teoria de que somente provas robustas podem basear uma condenação criminal. O
mais interessante foi que essa teoria foi construída, sobretudo, a partir da
jurisprudência do Superior Tribunal Militar, uma corte composta de quinze
Ministros nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo Senado
Federal, sendo cargos vitalícios. Das quinze cadeiras, três são escolhidas
dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército,
três dentre oficiais-generais da Aeronáutica - todos da ativa e do posto mais
elevado da carreira - e cinco dentre civis. Foram, pois, os juízes (Ministros)
do STM que passaram a exigir prova robusta, cabal, da conduta criminosa para
condenar o agente.
Com a Constituição de 1988, a sociedade brasileira
se reencontrou com a democracia, ademais da gama de direitos e garantias
fundamentais do cidadão que nela restaram consignados, alguns dos quais se
referem exclusivamente à questão da liberdade sob a ótica penal e têm status de
princípio, como é o caso do contraditório e ampla defesa, e da cláusula do
devido processo legal (due processo of law), somente para citar os mais
conhecidos. Entretanto, o que sem observa no Brasil é a retração desses
direitos e garantias fundamentais, a partir de iniciativas tanto legais quanto
mesmo da jurisprudência que emana dos tribunais pátrios, em especial aquela
advinda do Supremo Tribunal Federal.
No julgamento do caso do “Mensalão”, pelo Supremo
Tribunal Federal, ficou mais do que evidenciada a precarização de alguns
direitos, sem o que dificilmente haveria condenação da maioria dos 37 réus
arrolados na denúncia pela Procuradoria Geral da República, sobretudo daquele
que, por absurdo, passou a ser o alvo da sanha da maioria conservadora daquela
Corte. O relator do caso (Ação Penal nº 470, que é como o STF orientou seus
repórteres e redatores a não usarem o termo “mensalão” na divulgação de
informações durante o julgamento desse processo), o ministro Joaquim Barbosa,
especialmente no julgamento mais esperado que foi o do ex-ministro chefe da
Casa Civil, José Dirceu, e diante das “provas tênues” contra ele (segundo
palavras do próprio Procurador Geral da República, José Roberto Gurgel), adotou
uma linha de raciocínio baseada na polêmica e pouco usual “teoria do domínio do
fato”.
Por essa teoria, pouquíssimo aceita no Direito
Processual Penal, onde se considera autor quem tem o controle final do
fato e decide sobre a prática, circunstância e interrupção do crime. Assim, não
é necessário que haja prova direta da participação do agente no fato tido como
criminoso, mas, tão somente que ele ocupe uma posição hierárquica superior para
ser acusado e condenado por ato criminoso cometido por pessoa ocupante de nível
hierárquico inferior, na estrutura da empresa ou de órgão público. A propósito,
o ministro Lewandovski exemplificou essa teoria com o exemplo de um mergulhador
da Petrobrás que coloca, criminosamente, uma bomba num duto de uma estação
petrolífera. Por absurdo que possa parecer, o presidente da Petrobrás poderia,
neste caso, ser indiciado e condenado por crime de sabotagem. É impossível que
um gestor público ou de empresa privada tenha controle sobre os eventos que
ocorrem intramuros.
Claro que o julgamento da Ação nº 470, pelo STF, é
preocupante não apenas pelo cunho político que transpareceu, mas, sobretudo,
pela mudança de um paradigma fundamental em matéria de provas: a não exigência
de prova robusta e indubitável para condenação criminal, mas, apenas as tais “provas
tênues” do Dr. Roberto Gurgel, que nada mais são que meras suposições
intelectualmente encadeadas como supedâneo de uma condenação criminal. “Provas
tênues” são provas nenhumas, inservíveis para condenação de qualquer pessoa
acusada da prática de crime; são como fumaça a se esvair no ar. A sua adoção
pela Corte maior do Brasil denota o gravíssimo nível de precarização que atinge
diversas áreas do Direito brasileiro. Inegavelmente, um enorme e
lastimável retrocesso tocante aos direitos e garantias fundamentais do cidadão,
ademais de projetar um cenário que bem se adequa àquelas palavras do pastor
Martin Luther King: "O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos,
dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa
é o silêncio dos justos".
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